30 de mar. de 2011

DOENTE MENTAL CERTIFICADO -- 13ª entrevista


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29-03-2011   
Ao morder, avidamente, o pedaço de pizza amanhecida, um caroço de azeitona fraturou um molar do maluco Pão Doce. Da decorrente infecção surgiu leve intumescência no maxilar inferior.   
Vaidoso, para ocultar o efeito, deu forma de faixa a um trapo sujo e desfiado. Passou-a por sob o queixo,  unindo as alças em nó, sobre o alto do boné.
Em busca de socorro nas filas de hospital da assistência pública,  em pleno surto vai encerrando o discurso dirigido aos que lhe estão próximos -
— ... e assim, minhas senhoras, meus senhores, como estou lhes prometendo... assim serão impostas, democraticamente,  as diretrizes básicas da minha vontade, na pátria que governarei...

— Muito bem! Bravo! - Exclama uma anciã, seguida de outra, alimentando o delírio  do palrador.
 Um zuretado, da fila paralela e próxima -  que ali está a fim de avaliação médica, quanto aos efeitos da overdose em  noite anterior - ousou bater duas palmas de som discreto, incentivando -
—  É assim mesmo, senhor Pão Doce ! É nessa linha libertária que deverá governar. Emigrarei à sua venerável pátria, logo que a governança  esteja em poder de sua esferográfica. Haverei de lhe prestar grandes serviços, coordenando a confraria do fumacê consagrador. Porque, saiba, quando  eu lotado, empolado também sou...
— Sim, sim ! Acalmem-se ! acalmem-se todos ... meus futuros eleitores ! ...

Nesse meio tempo, distraídos ante a veemência do grande estadista, por alguns se achegarem ao herói, as filas iniciam a se confundir. Para reordená-las, o guarda da instituição,  antigo conhecedor do Pão Doce, intervém.
— Por favor, pessoal, conservem-se em suas filas, para evitar confusões...

A intervenção é inassimilável ao discursante. Sentindo-se ultrajado, diante das imensas multidões subornáveis, que, como sempre, as vê representadas nas duas ou três pessoas de suas imediações, indignado, revida ao guarda -
Sua autoridade, senhor, ainda que de elevadíssima hierarquia de ampla jurisdição, não deveria  atrever-se contra minha inconfundível e superior prevalência planetária. O senhor sabe quem sou? contra quem está agindo em desabrida provocação? Se a ousada façanha de me humilhar se desse  no seio da futura pátria dos meus impérios, o senhor seria imediatamente exonerado de seu elevado cargo. E, por prodigioso castigo, compulsoriamente, redirecionado a cargo estatal mais elevado, com direito a polpudos pro labores quinzenais, havidos dos subterrâneos da corrupção generalizada, nos meus conformes democráticos. Mas, claro! desde que, ao reduto, o senhor imprimisse o mesmo timbre  de eficiência demonstrada, ao tumultuar a fraterna conexão que eu mantinha com essas massas  desprotegidas.

Reformuladas as filas, o guarda, sabendo dos surtos do maluco, se mantém por ali com leve riso, volteando a passos lentos. Mas por senso profissional, considerando o todo caricato da figura, e o odor que exala... na tentativa de abreviar a estada do vivente no lacal, inquire -
— Pão Doce, por que essa faixa envolvendo o rosto? Problema dental? Posso colocá-lo lá na frente, para atendimento prioritário. Aceita?
— Senhor guarda, declino do favor com que talvez esteja pretendendo me desacreditar perante estas multidões. Ao mesmo tempo, penso no remorso que deve estar sentindo, demonstrado nesta tentativa de reparar a maldade contra mim praticada, na presença das massas que diuturnamente tanto me idolatram. Mas, agradecido, opto em permanecer aqui, onde é meu lugar, solidário às multidões mentalmente alimentadas pela esperança em novos tempos e arrebatamento aos céus, conforme lhes tenho prometido.
Como sou um portentoso, inimitável líder, repleto de bondades neste adelgaçado ventre, decido lhe conceder indulto, ao notar sua presumida inocência no entrevero, que o determino superado.
Meu bom amigo! Quanto ao mal de que me perguntou, o mal que padeço e tanto me  enaltece... este mal, que para aqui me trouxe em busca de socorro científico, não é dor de dente. Trata-se  do   mal mais desejado pelos imperadores do mundo...  este mesmo mal que aspiram lhes aconteça,  seguidamente. Mas esse mal não os acode porque, portadores de muito mais ínfimas virtudes do que as minhas... digno desse mal apenas eu tenho me consagrado. Desse mal, em tantas ocasiões consecutivas, tenho padecido... Mal causado pelas vibrantes, pelas tão amadas multidões embriagadas do êxtase que lhes induzo, pelo charlatanismo nato que verto em palavras. São os seguidos... os contundentes ... os ensurdecedores... enfim... são os intermináveis aplausos das multidões o mal que  têm me afetado, gravemente, os tímpanos. Daí, há dias, meus próprios seguidores terem me socorrido com esta faixa de fino tecido asiático, que trago protegendo meus ouvidos. São tantos e tão intensos os aplausos  a mim dirigidos, nos mais diversos recantos onde eu diga do  meu estilo de governo, que, seguidamente, sou posto neste estado enfermo, conforme estão me vendo: de ouvidos inflamados pela sobrecarga de decibéis suportados durante intermináveis ovações que a esta fila me trouxeram, em busca de otorrino milagreiro.

Agora, é outro senhor, pobre aposentado, um tanto calvo, óculos de intelectual, que se dirige ao doidão.
— Mas Sr Pão Doce... tenho acompanhado o estilo de seus pronunciamentos. A mim, o senhor não passa de esfarrapada tentativa de clonar Sancho Pança, do Cervantes.
— Importuno aparteador, que me parece especialista em denegrir... Nem sei o motivo por que Vossa Excelência não me relacionou, também, ao Doutor Vidraça (Dr Vidriera), outro personagem desse mesmo revolucionário escritor espanhol, nas artes literárias.
O Dr Vidraça, que se cria de vidro, exigia ser encaixotado, com proteção anti-choque até ao pescoço, nas viagens a povoados que lhe requeressem a presença. Sempre com guarda-costas, distraía as vielas com suas surpreendentes concepções, sobre tudo que lhe perguntassem. Mas, sempre, sem jamais permitir aproximação de quem quer que fosse, para evitar o perigo de ser estilhaçado. 
   Agora, sim, mediante vossa desleal afirmativa a mim dirigida em público... agora, sim, também vos mantenho à distância preventiva a trincas no meu prestígio universal.
        Então, Excelência, atenhamo-nos aos fatos. Aqueles personagens são apenas figurantes imaginados por Cervantes. Não passam de meras concepções de fenomenal talento.
            Por mais, também conclamo ao raciocínio toda essa multidão que nos ouve... Saiba V. Excelência – equivocado arcanjo! - que não me restrinjo a mera figura imaginária. Sou cristalina realidade, sob desígnios de redimir a humanidade inteira. Acordai... notai que não me ledes... não me imaginais... Não! Muito mais... vós me ouvis e vedes. Podeis tocar  minhas sagradas vestes... me aplaudis em ensurdecedores alaridos histéricos, o que têm  produzido estas graves inflamações em meus ouvidos. Não bastando, desfrutais do inebriante aroma exalado destas minhas formais  indumentárias de odores divinos...  Mas, então, com justa curiosidade haveis de perguntar! -  Por que sou, assim, tamanha realidade? Ora, porque a realidade é que existo! Como em pronunciamento anterior eu já vos dissera, tenho existência comprovada por acreditabilíssimo certificado de manicômio militar, onde - após sucessivas provocações e humilhações durante anos - em magnífica conclusão fui criminosamente internado sem motivo exposto, por iniciativa de monstros terroristas, escórias mentais da Natureza, dotados de exteriores formas humanas. E hoje até rendo graças por não ter desaparecido após a internação, conforme amplo noticiário investigativo, sempre referindo-se a destino  oculto dado a vítimas aleatórias de menor sorte. Fatos produzidos, às  vezes,  em rituais mais sórdidos do que os produzidos pela Santíssima Inquisição; do que os sádicos desvios da Revolução Francesa e do nazi-comunismo. Porque, pelo menos, esses agiam à vista  pública. 

            De repente, de por trás de um muro próximo,  rouqueja voz de timbre horripilante.
            — Mas ouça’i ô, maluco dos infernos ! Também tenho perseguido seu ramerrão de arquivo vivo; de porco revolvedor de lama; desassossegador dos meus ídolos do terror, que estão tranquilamente usufruindo de suas dignas aposentadorias, pelos crimes de tortura e intermináveis perseguições que praticaram, em cujo estilo, nós, enquadrilhados  em nossa potente, invencível, confraria damos prosseguimento sobre quem nos seja de fácil destruição. Previno-o: calibre essa boca de debilóide fétido. Nada impede que, de repente, você desapareça da face da terra, por meio de nossas insuspeitáveis artimanhas...
            — Ora, ora! A você, phthirus pubis de corruptos e gorilas, e aos que me ouvem, os convido a relembrar : - em todos os tempos, jamais existiram atos revestidos das mais tenebrosas covardias, que não encontrassem a admiração de indivíduos do mesmo mau caráter, dedicados a ameaçar denunciantes, a acobertar seus mestres degenerados. Quanto a mim, a estas alturas da vida - seja para o bem que me façam, seja para qualquer mal que me perpetrem - declaro... - estou pronto.  
           — O próximooo ! O próximooo... Senhor Pão Doce... Sr Pão Doce ! Não está ? Posso chamar outro?
            — Não, não, dona enfermeira... estou aqui.
        Para triagem preliminar, a profissional remove-lhe o trapo do rosto. Constata e orienta o subnutrido -
            — Senhor, siga a linha verde do assoalho. Sala 9, do dentista. 
            Aten, atençãão... o próximooo ...


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