8 de mai. de 2011

NO BALNEÁRIO PÚBLICO – 14°


À margem do Rio Pinheiros, o maluco Pão Doce preparando-se para o banho trimestral.
Inteiramente nu, o que mais nele aparece é o nariz afilado e curvo.
A triste imagem do corpo esquelético, indiferente à platéia, diverte os reclusos em seus veículos, durante o engarrafamento matinal, nas pistas marginais ao rio.
Atirando-se n’água, evita não submergir para sempre, agarrado em dois cascos pet, entre outros milhares que flutuam na leve correnteza. Naquela sensação de segurança, de peito para cima, o Pão Doce tenta elevar os pés alternadamente à tona d’água. De repente, pelo limbo acumulado nos vasilhames, uma das pts escapa e salta para longe da mão. Sem outra mais perto, agora agarrado a uma pet, o maluco entra em ligeiro pânico, percebido pelos que apreciavam a cena.
Da viatura de bombeiros, também engarrafada no trânsito, salta um soldado, corre em socorro. Livra-se da farda, em calções salta no rio, acode a criatura antes que o mais grave pudesse acontecer.
Arrastado para o capinzal da margem, vendo-se salvo e em segurança, o ardiloso Pão Doce, simulando revolta, dirige acusações contra seu salvador. Nesse ínterim, catadores de sucata e plásticos, que estavam nas imediações, curiosos, acercam-se de ambos, denotando o velho estilo de pseudo-acudidores - esses que aparecem só quando a situação de risco já foi resolvida.
Apesar do contínuo buzinaço, ainda se pode ouvir os protestos de reprovação do maluco...  
— Mesmo notando vossa farda, aí ao lado, Senhor General, tenho dificuldades em crer na intempestiva intromissão de vossa excelência, onde e quando não fostes chamado. Um flagrante abuso de autoridade! Como vos atrevestes importunar minha privacidade neste balneário público, sem minha prévia requisição? Na vossa condição de autoridade militar, acaso desconheceis o conteúdo da Carta dos Direitos Humanos, em plena vigência? Em vosso entendimento, como fica a liberdade da minha cidadania, sustentada pela gama de escores de valores humanos, a mim atribuídos por unanimidade mundial?
— Senhor... em princípio, está patente seu atentado ao pudor, assim, posto nu às vistas dessa multidão engarrafada nas pistas marginais. Não se toca, não? E um crime: o senhor atentou contra a própria vida, ao enfiar-se aí, nesse caldo poluído e podre simulando um rio. Antes de afogar-se teria entrado em óbito por envenenamento. É o que tem acontecido.
O Pão Doce rebate, dirigindo a palavra aos três outros circundantes...
— Mas... vocês ouviram só? Ouviram a acusação de criminoso a mim atribuída? Aquilatem o atrevimento desse general chegado a enquadramentos!
Para valorização dos sofismas que vai proferindo; para enfatizar sua imaginada autoridade, segue fingindo reconhecer o soldado bombeiro na condição de general. E continua em seu ardil contra o bombeiro...
Atentado ao pudor? Saiba vossa excelência que tanto vosso nu, quanto o nu de quaisquer pessoas do populacho, de fato, se resumiriam num atentado aos olhos do público aí bloqueado,  cumulando-se à aviltante agressão ao panorama visual deste magnífico meio ambiente ribeirinho. Vero! Mas pela cominação cometida, logo se percebe de vosso caráter problemático; de vossa incapacidade em discernir ante este meu corpo escultural, de inigualável perfeição, com tanta arte concebido a ponto de a própria Mãe Natureza jamais ter se atrevido a esculpir outro de mesmo intuito. Portanto, conclua sobre vossa pobreza cultural na interpretação deste desinteressado evento, desfrutado pela imensa coletividade que me contempla! Enquanto as belas paulistanas carentes de machos viris nos conformes do meu perfil... enquanto essas musas, gratuitamente, apreciam o esbanjar artístico das linhas de meu corpo... vossa perfídia revela incontida inveja pela mesquinhez com que me trata.
Quanto ao auto-envenenamento a mim atribuído, saiba excelência: o que não me mata me imuniza. É o que lhe afirmo. Nestas santas águas do Tietê e Pinheiros me banho, me perfumo e coleciono colares gordurosos de anti-corpus, que os trago no pescoço, por detrás dos joelhos e orelhas. Eis aí minhas vacinas polivalentes contra patogenias que se abatem sobre as populações postas vulneráveis, pelo enganoso apego a higiene dos grã-finos.
— Senhor... aqui está acontecendo um estranho diálogo. Afinal, quem é o senhor?
— Excelência, vossa pergunta causa-me desprezo para com vossa inferior autoridade. Sou o divino Pão Doce, de fama salta-fronteiras... o deus adorado por todos os governantes do mundo e ralés por eles governadas. Sou  o mesmo deus que, um dia, após vossa excelência conhecer por inteiro a minha fama,  resignado vos prostrareis a meus pés, rendendo-me salves e glórias, de braços estirados rumo ao côncavo celeste...
— To fora, amigo! Tenho incêndio a ser debelado, quando o engarrafamento permitir. Passe bem. Não volte ao rio, cara! Você morre!
Percebendo o estado mental do socorrido, o bombeiro se retira. Mas um dos catadores de pet, também maltrapilho, inquire o peladão exibicionista...
— Me diz uma coisa, bicho, por acauso você é o falado Pão Doce?
— Sim... em corpo e poderes... sou o próprio! Mas não me sinto bem quando inquirido por viventes de somenos importância social...
— Olh’aí... ô magrela... copia essa! Outra esnobada aí no meu amigo, nóis trêis vamo lhe dar o maior cacete, que é pra você nunca mais se ixibir contra os humirde... Tá ligado? Não vê que além de esquelético, você é pobre quenem nóis? Pior: com essa cara anêmica, você já fez alguma coisa na vida?
Diante da ameaça, vendo nuvens carregadas a seu redor, o maluco abaixa a bola. Lentamente toma de seus andrajos, se recompõe em completa indumentária, ensebada como sempre. Agora colhe o boné de sobre o capim e vai saindo de fininho...
— Mas, Caninana, se esse cara é o Pão Doce ... tenho quase certeza que é ele... Pelo que dizem... certa veis até já ouvi ele discursando... o cara é entendido das coisa. Você não deveria ter amedrontado tanto o coitado...
— Berinjela... não interessa! Ele ofendeu você. Não demito que ofenda meus amigo na presença de minha pessoa!
—Ôoo Caninana... pera aí! Não me ofendi. Se ele é o Pão Doce de verdade, não podemo perder a chance de nos diverti um tanto, mesmo porque com os ganho que nóis tem não temos condição de freqüentar teatro de comédia. Tenha calma... Deixe o cara por minha conta... 
Então, o mesmo Berinjela grita...
Ô Pão Doce! Não se amufine... calma! Eu sou o Berinjela. Já vi você fazendo discurso sobre uma tal pátria dos seus império. O que neste instante aconteceu entre nóis  foi só mal entendido... Se achegue novamente. Vamos trocá umas idéia, mano! Afinar, a manhã mal começou. Se o mundo dos rico tá engarrafado, no nosso tá tudo limpo! Tamos livre e faceiros no DVD! Beleza destilada, meu! ehehehhh ...
Tenho aqui da erva libertária, cumpanhero! Vou enrolar um, pra nóis gozar do socialismo igualitário!
Ao ouvir tão oportuno convite, apesar da fome que o aflige naquelas horas matinais, o Pão Doce sente-se aliviado, ao tempo em que se põe de cócoras sob um pé de mamona. Os outros três se aproximam, amigavelmente...
— Pão Doce, sou o Caninana. O Berinjela me disse arguma boa coisa a respeito dos seus conhecimento de valia. É verdade? Se for, pido desculpas, pela intimidação física da ameaça que eu te fiz.
Ante o pedido de escusas, no cérebro do Pão Doce inicia a volta do seu normal ímpeto de auto-engrandecimento...
— Caro amigo, não sou homem de agressões físicas, nem de praticá-las... nem chegado a sofrê-las. O sadomasoquismo não partilha do meu cardápio vivencial.
Em assim sendo, de minha parte, em conformidade com o que é da minha rebuscada formação nas hostes do classicismo, sempre dou encrencas a rápidas evaporações. Me convém dizer-lhe de minha participação em um cosmo bem mais erudito, responsável, tão diferenciado dos que, há décadas, na juventude se evadiram das escolas, para cultuar  vadiagem e vícios, mas que, na atualidade, se fazem de vítimas da sociedade, conforme a cuja, a cada dia, a esse respeito vai se tornando cônscia.
Se, por acaso, algum de vocês, ou os três, tiveram um passado nesses termos, admiro-os por demonstrarem  sensata assunção das conseqüências, catando lixo e pets, sem lamentações; sem se insinuarem vítimas de quem quer que seja, a não ser da indolência que agasalharam naquelas fases de preparação para a vida.
Mas se estão partilhando dessa situação, da notória pobreza que estampam por falta de oportunidades; se por justos motivos vocês estiveram impedidos ao princípio de igualdade nas canchas de formação básica a ofícios de melhor remuneração... então, meus amigos, confesso-me aguerrido defensor de reparação, pelo mal que os impediu. Reparação, sim. Antes tarde do que nunca, porém sempre com lastro em méritos identificáveis em cada um...
Diante do encadeamento de idéias, o Berinjela inicia lembrar-se de anterior discurso proferido pelo maluco... E atalha...
— Pão Doce... seu palavreado é esquisito, meio longo, compricado. Não sei se você tá zombando de nóis, ou se tá, mesmo, do lado de nóis pobre.
Você fala dos que se dedicaro a vícios. A que vícios se refere? Se for cachaça... nooossa! Se for vício de erva... barrabás! Se for de pó... até me benzo!
— Por que se benze?
— Porque você é o maior dos viciado, um puta cafungador metido a sábio puritano. Teu passado e presente é preto, cara! Não percebe?
— Amigo, Berinjela... você está se referindo a tema inoportuno. Ao falar em passado preto, lembre que o das berinjelas tem a mesma cor. Você está mostrando intenção de enfumaçar crédito a minhas palavras, aqui na presença dos seus dois amigos. Veja que, além de pretendê-los como parceiros, quiçá futuros ministros a meu serviço, antes, ambiciono se tornem meus fiéis eleitores, naquela conhecida pátria, que manterei sob minhas imposições democráticas, conforme é de sobejo conhecimento do meu eleitorado.
Prossigo! ouçam-me com atenção! Tenham por referência o que sempre tenho dito: aos pobres ignorantes, vícios são vícios. Aos ícones mais elevados das suntuosas sociedades a que pertenço, porre de cachaça é drink; a inalação dos demais produtos citados por você, esses, não passam de providenciais insumos de fertilização aos objetivos em comum, de nossa apartada sociedade dos grandes negócios.
No mesmo gancho, notem: se a mentira de algum pobre lesa apenas alguns milhares de incautos, essa mentira é enquadrada sob  crime de propaganda enganosa. Mas no anverso, se as giga-mentiras acobertam  boa gama de poderosos, ao enrolarem bilhões de sem-noção, as fantásticas mentiras são definidas como graças de deus, aceitas e protegidas a ferro e fogo.
Vocês estão entendendo a diferença entre os enfoques que expus? Nos mundos, as verdades estão sempre a serviço de interesses de elevadas cifras, ou de níveis de poderes, dos fraudadores que as criam.
— Mas, como você nos interpreta? Nóis também tamos entre esses sem-noção, ou nóis semos esperto!? Dando asa a sua mente descalibrada, Pão Doce... enfim, como você crassificaria os humano?
— Aborrecível colega... há dois critérios de classificação dessas criaturas. Um, pela índole, pelos impulsos próprios que cada um traz na cabeça, demonstrados nas posturas e ações. Outro critério tem por base, apenas, a confirmação física. Mas também é possível classificar pilantras conforme os termos ofensivos que usam ao elaborar perguntas. Entendeu?
O segundo critério não tem a menor preocupação, se no interior de determinada cachimônia, de aparente normalidade, reside, ou não, um monstro predador ou parasita incorrigível, que, de repente, pode reger graves transtornos. Esse segundo critério é o adotado nos sábios Direitos Humanos, que ainda há poucos minutos  referi àquele intrometido general. Direitos humanos, que foram propostos à ONU, por iniciativa de ingleses, franceses e norte-americanos, logo ao término da segunda guerra mundial.
— E os que inventaro esses direito, Pão Doce, têm dado bãos exempro, no cumprimento do que propusero?
— Sua pergunta é motivo para investigações. Trata de tema que tem me escapado à observação. E aqui os aconselho fazerem o que mando, sem olhos no que faço.
Mas, apesar da sua ofensa na pergunta que me formulou, audacioso amigo Berinjela, quanto a vocês, vejo-os... Eeepaaa! Per’ái... mais um pouco e finalizarão o parango! Até agora estão me deixando fora da confraternização satívica! Não vai sobrar pelos menos umas duas puchadas pra mim, não?
— Ah sim, Pão Doce... Desculpe... segure aí o morteiro...
— Heeffffffss ... heeefffffffssss ... êtaaaa! Hurrrrrfff... Essa é da boa! é federaalll !... Sativa de bom fornecedor... Até me zuniu nos ouvidos! ehehehhh...
Mas... voltando ao assunto... conforme devem ter percebido, há várias maneiras de classificar os bípedes mamíferos deste mundo:- dos realmente santos aos devastadores; dos histéricos aos centrados; dos racionais aos emotivos estéreis; dos fanáticos moderados aos extremistas do terror...
— Ah, sim, já que disse de terrorista, então sintonize mais esta, mestre Pão Doce: nestes dia tenho visto um sururu danado, na televisão do buteco, sobre morte de terrorista e ameaças de mais terrorismo. Que nos informa disso tudo, que dexa a gente apavorado?
— Meu ingênuo, inculto poço de inocência!... Qual é seu nome?
— Quinzinho, seu amigo!
— Agradeço. (Me quebrou, hein!)
Mas entendi do que deseja saber o amigo, de sutil ferroada. Muito a contragosto, seguidamente sou obrigado a referir-me sobre o mesmo mote, tão enfadonho por demais repetido, me gerando grave entojo. Mas, para atender sua compreensível falta de conhecimentos, de evadido escolar e de saberes... Vamos lá!
       O que está em curso não é sururu. É a malsinada herança milenar, deixada por loucos religiosos e seus sucessivos substitutos, que seguem incrementando a mesma peste criada, há milênios. Mas não se preocupem. Esse encachaçamento com seus delírios perdurará apenas por mais algum tempo.
Refiro-me às religiões e misticismos, que são indústrias de adulterar juízos em diversas gradações de fanatismo e loucuras, geralmente montadas por charlatães, na carpintaria de cavalos de tróia em forma de deuses, a serem introduzidos na mente de cada indivíduo, até mesmo antes de terem nascido.
Vou me referir a traços de alguns deuses e resumo dos efeitos que produzem.
- Nhanderu ou Nhandejara; Vixnu e Shiva – deuses dos indianos e suas castas super-oligárquicas bloquedoras da mobilidade social.
- Alah, o deus dos islâmicos, com suas tantas  subdivisões. Algumas conflitantes, de culto ao ódio dirigido contra os de outras crenças de fé, mantendo graves atentados aos direitos e dignidade das mulheres.
- Javeh, o deus do judaísmo com persistentes sugestionamentos de que os judeus são o povo predileto de deus, por esse escolhidos ao gerenciamento dos destinos do mundo.
- O deus cristão, derivado do judaísmo, tornou o hemisfério ocidental no mais poderoso e rico – enquanto a China atéia vai se tornando racional. Em contrapartida, esse deus cristão formatou essa banda hemisférica como um pardieiro da corrupção dos honoráveis senhores fabricantes de falências e crises fraudulentas; de estelionatários; de saqueadores dos povos de menores poderes bélicos; reino de seqüestros, de bárbaros latrocínios e chacinas...
- Deuses diversos e espíritos da áfrica negra, que se alimentam do sacrifício de animais, quando não de seres humanos.
- Deuses dos incas, astecas e maias, chegados a receberem sacrifícios de virgens e adultos imolados, em velhaca barganha por chuvas e boas colheitas.
- Por incrível que pareça, os únicos sábios inventores de deuses e espíritos têm sido os nossos índios brasucas. Por exemplo, no centro do grande terreiro da aldeia, colocam oferendas a seus deuses, em forma de biju e peixe moqueado. Após rito dançante e vocativa dedicatória, dando-se o não-comparecimento dos invocados para o banquete, os próprios brasucas se banqueteiam numa farra du caramba, bem ao estilo patropi, com as indiazinhas se divertindo com Paiakãs das aldeias. Tudo incluindo o mais importante: as profundas aspiradas num fumaçório cannabítico-sativo ao qual - neste momento solene, nós, herdeiros dessa sábia cultura - estamos rendendo culto, rogando à  deusa Jaci siga nos visitando  todas as noites. Vocês estão me entendendo?
        Então... meus fraternos amigos de mais esta  esquadrilha fumaceira... lhes digo - quanto ao sururu internacional da atualidade, no fundo... no fundo, tudo não passa de nojenta guerra entre os três deuses mais perversos da atualidade. Ambiciosos, monopolistas, carniceiros: o cristão, o islâmico, o judaico.   
      Foram moldados pelas personalidades obsessivas de seus criadores, todos de fala mansa entremeados de alguns gritões. E nessa perene carnificina guerreira, a humanidade escravizada às religiões vai se matando em nome de fantasmas.
Será que vocês estão, mesmo, entendendo o que lhes digo?
        — Para ser franco, Pão Doce, fora o que você disse da gostosa sabedoria teológica dos nossos brasucas, que gera prodígios e maravilhas, creio que nenhum de nóis entendemos nada.
        — Se vocês outros sentem o mesmo, vinda de vocês essa sincera confissão de felizes mentes estagnadas, não me causa surpresa. Entretanto, como já disse, há poucos instantes, com absoluta certeza, em futuro não longínquo os seus descendentes haverão de se dar conta das grandes maquinações religiosas, genocidas, que, por eras, mantiveram enlouquecida a mente geral da humanidade.  Mas naquele momento esplendoroso já estarão num mundo de vivência espontaneamente racional.
Nesta minha dura realidade ante vocês, pelo menos para alguma recompensa do que inutilmente eu lhes disse... Berinjela, antes que o austero tacape se apague, e a fome me desmaie, passe-o a mim para derradeira puxada de consolo. Consolo ao guerreiro hereditário que sou, há milênios combatendo a deusa louca dos grandes males e vícios – a exagerada Ambição. Mereço!


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